Vinho dos Mortos e Alegria dos Vivos, do silêncio da terra à celebração da vida

Há vinhos que transcendem o simples acto de beber, carregam lendas, simbolismos e memórias de um povo.

Em Boticas, uma pacata vila serrana de Trás-os-Montes, dois vinhos singulares entrelaçam-se numa narrativa bicentenária de sombra e luz, o Vinho dos Mortos, nascido da escuridão da terra em tempos de guerra, e o Alegria dos Vivos, um novo branco que irradia vida em homenagem a essa tradição.

Juntos, eles contam a história de como a resiliência de um povo fez brotar alegria onde se esperava perda, provando que mesmo enterrado o vinho pode renascer para brindar às gerações futuras.

O vinho que adormeceu para sobreviver

Em 1808, com o avanço das tropas napoleónicas pelo Norte de Portugal, os habitantes de Boticas, região montanhosa de solos graníticos e invernos rigorosos, viram-se forçados a atos de engenho para proteger os seus bens.

Entre os tesouros ameaçados estava o vinho, guardado em adegas de chão de terra batida (saibro).

Numa noite silenciosa, trampeados pelo medo e pela urgência, camponeses cavaram covas no chão da adega e enterraram as pipas e garrafas de vinho, escondendo-as sob a terra como quem esconde a própria alma da sua terra, meses depois, terminados os combates, veio a surpreendente revelação: ao desenterrar o vinho, esperando talvez encontrar apenas líquido estragado, descobriram um néctar vivo e aromático, de baixo teor alcoólico e ligeiramente gasificado, preservado pelo abraço frio e escuro do solo.

Aquele tinto de tonalidade palhete (um rubi claro) nascera de novo, com uma frescura inesperada e nuances subtis que ninguém antecipara.

Por ter “morado” debaixo da terra como que num sono profundo, ganhou o nome curioso de Vinho dos Mortos, mas a sua essência provou-se bem viva, um vinho que sobreviveu aos invasores e ressuscitou das profundezas da terra, carregando a alegria de um povo resiliente, e a partir desse episódio lendário, a fama do Vinho dos Mortos espalhou-se como um sussurro pelos vales de Boticas. Cada garrafa desenterrada tornou-se símbolo de vitória sobre a adversidade, e a tradição de enterrar o vinho manteve-se ao longo das gerações como lembrança do engenho botiquense.

Abrir uma garrafa deste vinho histórico não é apenas saborear um copo, é revisitar um passado de silêncio e resistência, sentir na língua a história viva de uma terra. Em cada brinde, o Vinho dos Mortos lembra-nos que mesmo nos períodos mais sombrios pode haver um renascer efervescente, uma alegria escondida sob a poeira do tempo.

Casa Sousa: guardiã de um legado centenário

Enquanto os anos passaram e Portugal se modernizava, aquela tradição quase esmoreceu, mas a família Sousa Pereira manteve acesa a chama.

A Casa Sousa, fundada em 1792, já antes das invasões, abriga a antiga adega de pedra onde esse vinho adormeceu e despertou, e é entre essas paredes seculares, impregnadas com o aroma da história, que o legado foi passando de mãos firmes para mãos futuras, primeiro pelas mãos sábias de Armindo de Sousa Pereira (1947–2024), patriarca da família, foi o grande responsável por dar nova vida ao Vinho dos Mortos no século XX, assegurando que a tradição não se perderia com o tempo, depois décadas atrás, quando poucos ainda se lembravam daquele vinho enterrado, Armindo persistiu: produzindo-o de forma artesanal, contando sua história a quem o quisesse ouvir e garantindo que cada garrafa carregasse a autenticidade transmontana. Sob sua guarda, o Vinho dos Mortos voltou a circular, ainda que em pequena escala, tornando-se um tesouro local protegido.

Agora, quando fomos convidados a participar na apresentação de um novo capítulo desta nobre história, no Boticas hotel Art&SPA no passado 14 de novembro, e nesse local foi revelado ao mundo e aos presentes um novo capítulo de uma história com 200 anos.

A dedicação de Armindo frutificou. Hoje, a família Sousa Pereira é a única produtora comercial do autêntico Vinho dos Mortos,  guardiã exclusiva deste pedaço peculiar do património vinícola português e Nuno Pereira, filho de Armindo e terceira geração da família, cresceu entre as pipas em Boticas, ajudando o pai na adega e absorvendo desde cedo o respeito por essa herança líquida. Foi Nuno quem, com a humildade de quem lava pipas desde menino e a visão de um enófilo moderno, entendeu que o legado precisava continuar a evoluir. Ele viu na memória do pai uma luz guia. Armindo dizia frequentemente que “o Vinho dos Mortos alegra os vivos”, sublinhando como daquele hábito quase fúnebre de enterrar vinho brotava, no fim, a alegria de o beber em celebração. Mal sabia ele que essas palavras inspirariam o capítulo seguinte desta história.

Vinho dos Mortos e Alegria dos Vivos, do silêncio da terra à celebração da vida

Vinho dos Mortos e Alegria dos Vivos com Nuno Pereira.

Alegria dos Vivos: um brinde de luz à vida

Foi com essa máxima em mente que, em 2025, Nuno Pereira decidiu virar a página e apresentar um novo vinho, Alegria dos Vivos Vinhas Velhas Branco 2024, o primeiro branco deste legado familiar e o contraponto luminoso ao antigo tinto. Na sua apresentação, no outono em Boticas, Nuno ergueu a garrafa deste branco sob as luzes do Boticas Hotel Art & Spa, exibindo no rótulo o rosto sorridente do pai desenhado em traços de arte. “Nascia” ali um vinho que celebra a vida, a luz e a vitalidade de uma história com mais de dois séculos.

Mais do que um lançamento comercial, era um brinde público à memória de Armindo e à capacidade de renovação da tradição. “O meu pai dizia sempre: ‘O Vinho dos Mortos alegra os vivos’.

Este vinho branco é a expressão luminosa dessa verdade, a “celebração da vida, da alegria e da memória” resumiu Nuno Pereira ao lançar o rótulo Alegria dos Vivos.

E assim ficou claro: se o velho vinho enterrado carregava silêncio e segredo, este novo vem carregar música e claridade, feito a partir de vinhas velhas plantadas a ~700 metros de altitude, nas encostas frias de Boticas, o Alegria dos Vivos encapsula o espírito da montanha transmontana. As uvas brancas tradicionais Gouveio, Arinto, Viosinho, Rabigato, colhidas nessas latitudes conferem-lhe uma acidez fresca e intensa, impregnada dos ares rarificados da Serra do Barroso.

Os solos graníticos onde nascem as videiras imprimem no vinho uma mineralidade e frescura vibrante, quase como se a brisa das alturas tivesse ficado presa em cada garrafa, após a fermentação, o vinho estagiou nove meses em barricas usadas de carvalho francês, ganhando estrutura sem perder o carácter cítrico e leve. O resultado é um branco de cor citrina brilhante e notas aromáticas que evocam luz, leveza e festa, como um amanhecer engarrafado pronto para brindar.

Lançado numa edição limitada de apenas 1.906 garrafas numeradas, o Alegria dos Vivos nasceu para ser exclusivo um vinho pensado para guardar, para abrir em momentos especiais e, sobretudo, para celebrar, cada gole dele parece acender uma pequena chama de alegria, cumprindo a promessa contida no seu nome.

Sombras e auroras: a dualidade de um legado vínico

Se o Vinho dos Mortos nasceu da sombra do escuro das adegas e do silêncio imposto pelo medo, o Alegria dos Vivos nasce como a sua imagem ao espelho, banhada de luz.

Um é resistência silenciosa; o outro, celebração efusiva. Um passou meses esquecido debaixo da terra, absorvendo a quietude e o mistério; o outro chega para ser erguido em brindes, iluminando momentos de convívio. Apesar dos contrastes, não são opostos inconciliáveis, mas duas faces poéticas de uma mesma história. Afinal, como num ciclo, o vinho que outrora “morreu” escondido é o que hoje inspira os vivos a celebrar. Enterrar uma garrafa foi, lá atrás, um gesto de proteger o passado; abri-la agora (ou abrir a nova, criada em seu tributo) é um gesto de celebrar o presente e o futuro. Essa complementaridade ficou bem expressa na homenagem de Nuno ao pai: o Alegria dos Vivos é, em essência, “o espelho luminoso do histórico Vinho dos Mortos”, um vinho que honra o passado, celebra o presente e acende expectativas para o futuro.

Nesta dança entre sombra e claridade, Boticas e o seu vinho ganham renovado destaque. O legado que começou como segredo de uma aldeia tornou-se patrimônio cultural, e agora, com criatividade e respeito, reafirma-se no contexto contemporâneo. A aliança entre o Vinho dos Mortos e o Alegria dos Vivos coloca de novo Boticas e Trás-os-Montes no mapa dos apreciadores de vinhos autênticos, carregados de alma e história.

Em pleno século XXI, estes vinhos provam que tradição e inovação podem andar de mãos dadas: do fundo de uma adega secular até às mesas modernas, a história continua viva e a ser contada, em cada copo servido.

No momento em que preparamos o paladar para novas descobertas, anunciamos que as notas de prova e sugestões de harmonização de cada um destes vinhos serão partilhadas brevemente aqui no Clube de Vinhos Portugueses, num convite a mergulhar ainda mais fundo nos seus aromas e sabores únicos.

Até lá, fica o convite aberto ao leitor, explore estes vinhos e as suas histórias e se tiver oportunidade, visite a terra de Boticas, sinta o cheiro das adegas onde garrafas dormem sob o chão e deixe que um morador lhe conte orgulhoso a lenda local, ou simplesmente abra uma garrafa, seja do enigmático Vinho dos Mortos ou do radiante Alegria dos Vivos, e sem falta brinde, brinde ao engenho dos antepassados e à criatividade dos presentes, brinde ao que se escondeu para nos surpreender e ao que se revela para nos encantar, brinde aos que mais amamos e também aos ausentes que mais amamos.

Deixe que cada gole o transporte através do tempo, neste diálogo entre o passado e o presente onde, verdadeiramente, o vinho dos “mortos” alegra os vivos.

Source // fonte: www.vinhodosmortos.pt